Por que escrevemos?
 



Cronicas

Por que escrevemos?

Gabriela Araujo


Eu lembro da primeira palavra que escrevi e um adulto conseguiu ler, já faz trinta anos, mas foi um daqueles momentos marcantes. Não, não foi o meu nome, esse que me foi dado e ensinado, veio de fora para dentro, e não espontaneamente de dentro para fora. E nem foi tão complicado aprendê-lo, apesar de ser um nome difícil para uma criança na pré-escola, com sete longas letras, R no meio e várias consoantes, mas era constante e presente no meu dia a dia, era familiar, se criou junto comigo.

A minha mãe tinha a costura como um hobby, e de maneira bem simples ela bordava nomes em toalhas, às vezes ilustrava também. Para cada letra, uma cor de linha diferente. Todos os meus pertences da escola eram marcados com meu nome, seja em linha, seja em tinta, ou escrito de caneta com a caligrafia dela. Eu via o meu nome em todas as peças do uniforme, o via na hora do lanche, bordado na toalhinha de dentro da lancheira, ou via apenas as iniciais na etiqueta da calcinha. Desde mais nova eu identificava que aquele era o meu nome, o meu apelido, o meu nome completo. Hoje, percebo que naquela época que ao ver a letra da minha mãe, eu podia sentia a sua presença, o seu cuidado, carinho e até a sua autoridade, aquela que me lembrava do zelo que eu deveria ter com as minhas coisas. Naquela letra materna, estava implícito tudo isso. Eu percebia o seu toque, na caligrafia, nas cores escolhidas das letras, eu a via naquela forma. O cordão umbilical teria então, se enrolado no carretel e iniciado bordados em ponto-de-cruz.

Não lembro do momento que tive a autonomia de saber colocar o meu nome no papel, acho que esse, na verdade, primeiro aprendi a desenhar, antes de escrevê-lo. Conseguia identificar o contorno das letras, depois a ordem que formaria uma palavra, do mesmo jeito que aprendi a desenhar o sol, a flor e a casa. Tenho viva a memória onde a professora ensinava a sentir as letras com os dedos. Na pré-escola era usado como ferramenta de ensino, muitas coisas feitas à mão, entre elas umas placas de madeira, pintadas de azulmarinho onde nelas eram coladas uma letra recortada em papel-lixa. As crianças sentavam-se em círculos no chão e passávamos cada placa de mão em māo para sentir a forma das vogais, das consoantes e depois usávamos esse papel-lixa para colorir a letra. O cheiro do giz-de-cera extraído pela lixa, explodia nessa hora. As cores eram ficavam mais intensas e vivas no papel e na memória.

Em casa, as letras faziam parte do meu lazer. Eu tentava formar uma palavra e experimentava a caneta em tudo, formava uma fileira de letras aleatórias, tipo “HCPQRTAEUB” e que obviamente não faziam nenhum sentido, eram impossíveis de serem lidas, eu mostrava aquelas letras para quem estivesse ao meu lado e perguntava o que estava escrito, por muito tempo ouvia: “Nada”. Eu tentava bastante, mas não conseguia palavras. Até que um dia, aos cinco anos de idade, a minha obra-prima nasceu ao lado de todo aquele rascunho de letras aleatórias, que mais parecia um caça-palavras em um liquidificador com letras. Enfim, sozinha e afastada, a primeira palavra foi de fato, escrita. Escrevi em um pedaço de um pano fino, laranja que me servia de coberta na brincadeira com as bonecas. Estava lá em letras garrafais, “LEAO”. O acento não estava no lugar certo, porém eu sabia de sua existência e seu pertencimento junto à palavra, lá estava o til, em um lugar bem perto do A, mas não em cima. Coincidentemente, ou não, naquela hora eu me sentia como um leão. Orgulhosa de mim e poderosa. Desconfiada, levei o pano laranja para minha mãe e perguntei: - “Mãe, você sabe o que está escrito aqui?”, e ela sem ter ideia do que estava sendo testada, pegou o pano, olhou todas as letras, misturadas com desenhos e procurava o que ler, eu então apontei para a palavra e com naturalidade ela me respondeu: -“Leão”. Abri um sorriso e cheia de mim, falei: “Eu já sabia!”. Corri contente, vestida com a minha calcinha com iniciais na etiqueta, e com aquele pedaço de pano pela casa, mostrava para todos que encontrava e fazia-lhes a mesma pergunta que fiz para minha mãe. Era oficial, eu havia conseguido escrever uma palavra que saiu de dentro mim. E não havia copiado da professora, não havia decalcado, era original, genuíno e aconteceu no meu próprio tempo.

O meu leão evoluiu. Assim como também evoluíram os “patos”, “gatos”, “bolas” e primeiras palavras dos meus colegas. Evoluiu para um desaforo que chega escrito no aviãozinho de papel, um pedido desenhado com o dedo no pó do vidro do carro, para um aviso colocado embaixo da porta do vizinho, em negrito e caixa alta, para uma carta de amor enviada pelo correio, pelo e-mail, ou por dentro de uma garrafa, para um bilhete na geladeira tal como “não é fome, é sede” ou “queijo, ovo e leite”, para bulas de remédio, prescrições médicas em garrancho, relatos em um boletim de ocorrência, para o testamento, a lápide, o nome do filho bordado na toalha, para uma carta de recomendação e demissão, um roteiro de teatro, filme ou novela, para um livro inteiro, para letra de uma música, um pedido de perdão, um desabafo, uma assinatura que muda tudo.

A escrita quando nasce, cresce com a gente. Penetra, eterniza, enfatiza, formaliza, ensina, acalma, diverte, inspira, conforta. Te faz gritar sem emitir nenhum som, te vira do avesso, te coloca de volta para os trilhos, para cima ou para baixo, e quando você se conecta com o que lê, pode te transportar para qualquer época sem que saia do lugar, inclusive te trazer para o momento. Com a escrita você pode tocar em quem nunca viu, ou fazer dançar quem nem imagina, ao colocar uma melodia abraçando a sua letra.


Gabriela Araújo nasceu em Abril de 1987 em Recife - (PE), graduou-se em Publicidade e Propaganda (2009), seguiu por algum tempo na área de rádio, eventos e marketing empresarial. Em 2016 mudou-se para Califórnia (EUA), onde trabalhou como babá e dog walker, lá também aperfeiçoou seu gosto pelo vinho, culinária e criou um Instagram para suas artes abstratas (@arts.garas). Em 2018 se reaproximou dos seus antigos hobbies ao estudar Creative Writing e Graphic Design no City College of San Francisco. Atualmente é aluna do Curso online de Formação de Escritores na Metamorfose (RS) e trabalha como Oficial de Justiça em San Francisco - (CA), onde vive com sua esposa e seu cachorro, Ferris Bueller. É aluna do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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